28.8.03

ah, mas o que eu diria para ele se ele estivesse aqui?

eu ia ser filha de novo.
brigar, rir, resmungar, fazer café, ouvir bronca, as coisas de sempre.
não tem isso de nunca mais eu reclamo de nada que ele fizer.
não.
ser filha é ser espontânea.
é reclamar entre os dentes quando ele me chamava lá do meu quarto para acender a luz da sala. quando o interruptor estava quase ao alcance dele.
é rir e brincar e cantar a música que ele gosta.

pai e filha devem ser espontâneos. senão, não são pai e filha, são pessoas se fazendo de pai e filha.




... mas o que eu ia ouvir por viver há quatro anos com fred sem estar casada... isso eu dispenso, tá? ;)

26.8.03

e teve uma vez que tinha uma amiga minha passando uns dias lá em casa. a gente emparelhava nos 13 anos.
aí ela fez uma coisa que meu pai não gostou.
que coisa é essa, não lembro. juro. não devia ter importância.
mas papai veio com quinze pedras na mão prá cima de MIM!
e tome sermão e eu bestificada, pois não tinha feito nada.
a minha amiga mais bestificada ainda.
aí, depois de dizer tudo que quis, me chamou para falar com ele sozinha.
"mas, pai, eu não fiz nada!"
"eu sei"
????
"é que eu não podia brigar com a filha dos outros. agora ela sabe que não pode fazer mais isso."


tão tá...
era ano-novo de 52 para 53.
papai, mamãe, lu no colo, vô juca e vó maria (pais de mamãe)
meia noite.
mamãe abraça primeiro vô juca.
o suficiente para papai dar o primeiro surto do ano.
"você abraçou primeiro seu pai! você não me abraçou primeiro!"
"mas, geraldo, ele estava mais perto!"


homens. 50 anos de nenhuma evolução ;)

21.8.03

meu deus, que coisa linda. peguei no blog da simone jubert


meu avô quer voar.
por isso seu corpo está tão leve,
por isso tão pouca carne.

meu avô precisa alcançar o céu
e planar, de braços abertos,
sobre tudo.
por isso o ar daqui é pouco,
por isso tentam lhe dar mais oxigênio.
por isso poupa o fôlego,
e fica tanto tempo mudo.

meu avô quer ficar livre.
eu sei.
seus cabelos branquinhos contaram aos meus dedos.
e olhando pra ele a gente vê
folha de outono que resiste até o fim do inverno.

meu avô precisa de sopro.
precisa de sonho.
precisa de asas.
e todas essas coisas não posso lhe dar.

mas ainda assim, asas eu tento improvisar,
costurando-as dia e noite
com as penas de meu amor.

20.8.03

outra de papai, que quase matou mamãe de vergonha.

a gente vinha de carro, andando devagar, por uma rua qualquer de recife.
passa um casal de namorado.
papai bota a cabeça prá fora e grita "êeee! vai casaaaar!"
o carro anda um pouquinho e morre.
o casal passa de-va-ga-ri-nho pela gente.
eu me escondo debaixo do banco de trás.
mamãe fica roxa.
ninguém disse nada. e a gente voltou quietinho para casa. ele, principalmente.
aninha, vem conhecer teu avô.
dos pensamentos de doutor geraldo

o pai começa a perder o filho quando ele vai jogar bola na rua.
a filha ele perde de uma vez só, quando casa.
porque ele gostava.

A noite do meu bem
Dolores Duran

Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
E a primeira estrela que vier
Para enfeitar a noite do meu bem

Hoje eu quero a paz de criança dormindo
E o abandono das flores se abrindo
Para enfeitar a noite do meu bem

Quero a alegria de um barco voltando
Quero a ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem

Ah! Eu quero o amor mais profundo
Eu quero toda a beleza do mundo
Para enfeitar a noite do meu bem

Ah! Como este bem demorou a chegar
Eu já nem sei se terei no olhar
Toda a ternura que eu quero lhe dar.

18.8.03

meu pai deixava eu tomar banho de chuva.
minha mãe surtava quando eu fazia isso.

17.8.03

como te agradecer, chrystal? já escrevi para você, mas fiquei sem palavras, do mesmo jeito que estou sem palavras agora. o que você escreveu me deixou comovida. e com vontade de ter meu pai para ir olhá-lo quando ele estivesse distraído, e não falar nada, e dar-lhe um beijo sem dizer o motivo.

como você fez com seu pai.


leiam o post de sábado, 16 de agosto, e entendam as minhas razões para este agradecimento.
obrigada, chrystal. de coração.
eu escrevia poemas.
e tinha certo destaque: eles saíam no suplemento infantil do jornal.
e certa vez até ganhei um prêmio e minha foto saiu no jornal.
mas a coisa mais linda que me aconteceu foi um elogio dele, que disse que gostaria de assinar um dos poemas que eu escrevi.


depois que ele morreu, parei de escrever poemas.
escrevo aqui minha vida com ele, minha vida sem ele.
no quarto da telinha falo dos filmes que vejo, as pequenas coisas, os problemas, as risadas, o meu amor por fred, por minha família e pelos amigos.
mas não escrevo mais poemas.
e é difícil pensar nessa música sem um aperto no coração.


O Filho que Eu Quero Ter
(Toquinho/Vinícius de Moraes)

É comum a gente sonhar, eu sei, quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar o filho que eu quero ter
Dorme, meu pequenininho, dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho de tanto amor que ele tem

De repente o vejo se transformar num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar quando eu chegar lá de onde vim
Um menino sempre a me perguntar um por quê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem e a quem só diga que sim
Dorme, menino levado, dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado de tanta dor que ele tem

Quando a vida enfim me quiser levar pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar no derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar num acalanto de adeus
Dorme, meu pai sem cuidado, dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado com o filho que ele quer ter



e aí eu penso no filho que meu pai tanto quis e que nunca veio. e, que, de repente, chegou esta menina que escreve aqui as saudades do pai.
e eu vou contar como esta menina começou.



era fevereiro, 1970, minhas irmãs de férias. uma tinha 16, a outra tinha 10.
minha família ia para a praia na outra semana.
mamãe estava chateada. pelas contas, ela ia menstruar e não ia aproveitar a praia.
mas aí ela refez as contas e viu que ia dar para viajar sem problema.
então ela chamou papai e contou a novidade.
os dois sentaram nos degraus da escada que levava para o primeiro andar da casa e ficaram lá, conversando, a tarde toda. sonhando com o futuro e fazendo planos para o neném que ia chegar.

ele tinha 42, ela tinha 40.

21 de junho o brasil foi tricampeão e era o aniversário de papai. 43. eu chutava na barriga de mamãe. e todo mundo tinha certeza de que geraldinho ia chegar.

12 de outubro eu nasci. o doutor disse que eu ia nascer em novembro, o enxoval estava em recife. mas ninguém perguntou a minha opinião e eu nasci na unidade mista de catende. peguei todo mundo de surpresa, de novo. era de manhã e papai foi correndo tirar graça da escola, no meio de uma prova de matemática. quando a freira quis reclamar, papai pegou graça pela mão e disse que ela ia conhecer a irmãzinha. e saiu, deixando a freira falando sozinha.

e eu cheguei, linda, rosada, gordinha, de olho azul. a ponta de rama. e todo mundo esqueceu que era para nascer um menino.
certa vez ele me disse "fora pai e mãe, todo mundo passa na cara o que faz pelo outro"
não foram essas as palavras, mas foi esse o sentido.

e, meu deus, como ele estava certo.

mas ele também me ensinou que "não se deve cobrar as coisas feitas por amor"

e eu me esforço por isso até hoje.
o dia que a mulher fez strip-tease na frente da nossa casa.

rapai! pura verdade. a gente alugou uma casa na praia, em São José da Coroa Grande, para desgosto de mamãe, que dizia que casa na praia era o dobro de trabalho para ela.
só que a casa não era num lugar tranqüilo. Papai alugou no point da praia. deu no que deu: fim de semana era um inferno de gente batendo na porta, pedindo água, pedindo para usar o banheiro.
e aí essa mulher pediu para trocar de roupa lá em casa, e papai, muito calmo, foi com o argumento de que, se deixasse uma, tinha que deixar todo mundo.
a mulher disse que tudo bem e tirou a blusa. vestiu o sutiã do biquíni e foi embora.

lu ficou horrorizada. papai ficou vermelho. e o queixo dele deve estar caído até hoje.
o homem muda quando vira avô.

papai virou um pudim com os netos.
ele, que nunca ajudou mamãe com os cuidados conosco, ficava cheio de coisa quando a criançada nasceu.
e tome forrar o chão com a colcha de chenile para aninha não engatinhar no chão frio.
(nosso cachorro, charles, um pequinês dentuço e olhudo, alucinou por aninha. dormia embaixo do bercinho dela e não havia jeito de tirá-lo de lá. quando ela aprendeu a engatinhar, ia deitar na barriga dele, sob os protestos da minha irmã e os sorrisos de papai, que dizia que era bom para ela ter anticorpos!)
e ele ensinou aninha a pedir a benção, estendendo a mãozinha para ele beijar.
e ele comprou para maria clara uma boneca que era maior do que ela. e maria clara tinha medo da boneca ;)
e ele mandava presentes para os netos em rondônia.
mas era bobo, meu deus.
ele com bruno no colo, sério na foto, mas ô orgulho de dizer "meu neto"
ou quando ele saía com aninha, de mão dada, para passear.
e quando clara nasceu e ele se derreteu no álbum do bebê, descrevendo um futuro lindo para ela.


eu fico danada da vida. meu filho não vai ter esse avô.

16.8.03

um dia ele chegou e disse que eu já tinha 17, tava na hora de aprender a dirigir.

olhei bem nos olhos dele e disse que não queria, obrigada. não vou dirigir. não quero o senhor gritando comigo.

ele ficou pasmo. eu também.
mas ele ficava muito nervoso quando dirigia.
e dirigia contra as ordens dos médicos.
passava mal e parava o carro. abria a porta, ficava encostado, respirando fundo, esperando o remédio do coração fazer efeito.
muita gente o ajudou. lembro de um casal que o trouxe em casa.

mas era irresponsável, e isso eu digo com uma voz cheia de carinho. era irresponsável, só fazia o que queria. e matava a gente de preocupação.

e em viagens maiores ele cantava e me fazia rir.
"você me mata de rir fazendo có-ce-gas!!
e
"por ti, eu me esborracho todo, morena..."

não lembro de mais nada das músicas. eu era pequena, e era só ele dizer que ia cantar que eu já começava a gargalhar.
tenho uma lembrança muito vaga, é quase como lembrar de um sonho: a gente no carro, ele na direção, eu no colo dele, brincando de dirigir.
incrível, isso. é só começar a escrever que as histórias voltam. e eu penso que falei tudo e preciso voltar correndo pro micro, para contar mais um pouquinho.

papai era um dos piores motoristas que existiram desde a invenção da roda.

certa vez, a gente vinha de carro de paudalho para recife, quando numa freada brusca ele conseguiu fazer quebrar três bandejas de ovos que estavam no banco de trás do carro.
não sobrou um ovo para contar história. o carro fedeu horrores. mamãe reclamou tanto que ele teve que vender.

a gente estava voltando da granja de um amigo dele, seu Virgínio, e ganhou os ovos de presente.


mas não foi só esse acidente. graças a Deus, nunca houve um acidente verdadeiro, só pequenos sustos.
papai não podia ver um buraco na estrada. capof o carro dentro.
outra vez foi o escapamento do carro que caiu no meio do caminho. paramos numa casinha no meio do nada, e as pessoas nos ajudaram. tenho pouca lembrança disso... lembro do cano de escape fazendo barulho ao bater no chão, e depois caindo de vez. de beber água num copo de barro, de ficar preocupada com o meu cachorro e de papai reclamando quando tudo aconteceu e depois agradecendo à família que nos ajudou e da viagem seguir quando já estava escuro.

e as pilastras do prédio, que a gente brincava dizendo que se afastavam na hora dele estacionar.

era fácil encontrar o carro dele estacionado na rua. o mais fora de ângulo possível. na hora dele fazer baliza eu ficava muda e quieta. ele gritava com quem tirasse a atenção dele. o que eu queria era ficar invisível...
meu pai gravava fitas absurdas. foi uma das manias dele. aliás, ele era um homem de manias. teve a mania de fotografar, antes que eu nascesse (droga!).
ele comprou um curso por correspondência e até revelava. ainda sobraram uns slides comigo bebezinha. e ele se enchia de orgulho para dizer que tirou a foto do farol de tamandaré ligado em plena luz do dia.
simples: botou um filtro bem escuro na câmera e esperou o sol bater no ângulo certo. o farol refletiu a luz e na foto ele parecia aceso, de noite.

um gênio ;)

depois foram as fitas. meu deus, as fitas.

depois foi a vontade de escrever. se trancava no escritório (ô nome pomposo para o quarto da estante!) e escrevia horas e horas.

depois, quando comprou o vídeo, eram dez filmes por dia. ou quase. herdei o exagero dele ;)


mas as fitas. na mesma fita tinha "vermelho 27" com o nelson gonçalves e "a véia debaixo da cama"

e eu cresci ouvindo essas fitas e a série "a arte de". a arte de caetano, bethania, gal e elis.

em homenagem a doutor geraldo, a música que eu sei cantar até hoje: vermelho 27!


Vermelho 27
(Herivelto Martins e David Nasser)

Esse homem que hoje passa maltrapilho
Fracassado no seu traje furta cor
Um dia já foi homem, teve amigos
Teve amores, mas nunca teve amor
Soberano da roleta e da pista
Foi sua majestade, o jogador

Vermelho 27
Seu dinheiro mil mulheres conquistou
Vermelho 27
Seu dinheiro tanta gente alimentou
Um rio de champagne, sorrindo, derramou
E a sua mocidade em fichas transformou

Vermelho 27
Quando a sorte caprichosa o abandonou
Vermelho 27
Cada amigo num estranho se tornou

Os ossos do banquete
Aos cães ele atirou
A vida, a honra, tudo
Num lance ele arriscou

(falado) jogo feito! preto 17!

Deu preto 17
Nem um cão entre os amigos encontrou



por conta dela, lembrei que meu pai gostava de ovo com duas gemas. era a surpresa que o fazia feliz.

Isso - do ovo ter duas gemas - acontecia quando ele comprava ovo de capoeira - ou caipira - e não quer dizer que iriam nascer pintinhos gêmeos ou que o ovo daria poderes mágicos. não quer dizer nada, aliás. esse ovo que a gente come não é galado, ou seja: não tem pinto dentro. é ovo de galinha sem galo, hahaha.

15.8.03

toda criança gosta de fuçar nas coisas guardadas da mãe.
então.
eu tinha seis, sete anos e achei a foto de casamento dos meus pais.
minha mãe eu reconheci na hora. mas quem era aquele homem magrelo, dentuço e orelhudo com ela? saí pisando duro!!
"Mãe! QUEM É ESSE HOMEM?"
"É teu pai, Telinha. "
"É não! meu pai é bonito e esse homem é feio!"

14.8.03

eu estava no primeiro científico, ia fazer 15 anos. e leo olhou para mim.
e leo começou a colocar bilhetinho no meu caderno.
e leo começou a me acompanhar no caminho de casa.
e leo de vez em quando me roubava uma flor.
e leo era o menino mais lindo da classe.

e eu cresci ouvindo meu pai dizendo que, quando eu quisesse namorar, a primeira pessoa que devia saber era ele.

então eu cheguei em casa e contei.
pai, tou gostando de um menino da minha classe.

papai olhou para mim, sério.
e falou.
você é muito nova para namorar. depois se apaixona, vai querer casar. eu não deixo você namorar agora. vá e diga isso ao rapaz.
fiquei espantada. eu só queria namorar. casar era uma coisa além da imaginação.
eu queria dar uns beijinhos no menino mais lindo da classe, andar de mão dada, ser a namorada dele.
era 1985 numa cidade de interior. namorinho de colégio era só isso.
mas obedeci.
e ele era o menino mais lindo do mundo.
mas obedeci.

no outro dia, na sala, eu disse isso ao leo.
não posso namorar com você, meu pai não deu permissão.


e leo, que sentava ao meu lado, passou pro outro lado da sala. eu só podia vê-lo no recreio.



anos mais tarde, eu soube a razão dele cortar o meu namoro tão de cara.
aos 16 anos minha irmã inventou de ficar noiva do namoradinho.
foi um inferno em casa. não lembro nada, eu só tinha cinco anos.
papai teve medo de passar por isso de novo.
mas, como era de seu costume, não explicou a razão.
e eu também não perguntei.
obedeci e nunca dei um beijo em leo.

13.8.03

eu estava na quinta série e era o último dia antes das férias de junho.
papai tinha prometido que a gente iria a fernando de noronha.
isso em 1980. fernando de noronha era tão distante quanto a china.
só dava para viajar em avião da fab ou de navio pesqueiro.
e eu falei para todo mundo que eu ia para fernando de noronha.



doutor marcelo, cardiologista de papai, ficou escandalizado com a idéia dele e proibiu a viagem.
voltei murcha para a escola
e papai nunca conheceu fernando de noronha.
papai tinha um amigo que era rico desde sempre. nascido em berço de ouro. estudioso como ele só: tio Cláudio Souto é importante na faculdade de direito de recife, tem título a três por quatro e é uma pessoa simplíssima, doce, gentil, um anjo encarnado em gente. quem o conhece sabe do olhar dele, tão tranqüilo.
pois tio cláudio era uma das pessoas que papai mais admirava.
porque - segundo papai - pobre quando estuda é para melhorar de vida, rico quando estuda é porque gosta mesmo de estudar.

;) as lógicas de doutor geraldo...

11.8.03

papai não gostava de ver alguém deitado com as mãos cruzadas no peito. dizia que agourava.
aprendeu isso com a mãe dele, vó Stella. Ele também não gostava de sapato virado e sempre calçava o pé direito primeiro.
passei dia dos pais com meu sogro.
um almoço cheio de risadas e causos. fiquei feliz por ter sido "adotada" pela família de fred, por me sentir à vontade, por ouvir histórias velhíssimas que já foram contadas mil vezes mas que são novas para mim.
como a do avô de fred e do bêbado.
pois o avô de fred vinha andando na rua quando viu um bêbado agarrado num poste, com um maço de couve na mão, gritando "ainda hei de morrer virgem!". o avô de fred não se agüentou e começou a rir. o bêbado ficou sério e reclamou "já viste um burro a zurrar? olha-te no espelho, asno!"

quero bem ao pai de fred, e ele me quer bem. isso enche o coração num dia como o de ontem.

9.8.03

papai me deu o pequeno príncipe de presente.
e na dedicatória, assinou "a raposa que vive dentro do seu pai"

ô, meu pai-raposa. eu que sinto falta, eu que não sei quando voltaremos a nos ver. e meu coração vive com saudade.
percebi que uma frase que me disseram há tempos se aplica a mim, a este blog. a frase é mais ou menos assim: "se queres ser universal, fala da tua aldeia."
estou recebendo tantos e-mails carinhosos sobre este blog. tanta gente que está lendo e se emociona e às vezes se reconhece. e eu tou só falando do meu pai. um homem de defeitos e qualidades, sem nada de extraordinário, nunca foi herói nem salvou criancinha do incêndio. e nem me arvoro a ser literata, quem, eu? imagina. literato é o drummond. e ainda assim, meu deus, tanta emoção me chega através de quem me lê. e amanhã é mais um dia dos pais e meu presente está aqui. tive meu pai com saúde por tão pouco tempo e tenho medo de perder o que ficou dele, por isso eu escrevo. e pessoas me encontram e falam coisas que me deixam sem jeito, rindo e olhando para os pés. mas como eu não posso escrever isso num e-mail. "suas palavras me deixaram rindo e olhando para os pés feito uma menina matuta", eu tento achar outras palavras.

mas quem foi geraldo? eu não sei. sei quem foi meu pai. porque ele era mil outras coisas: era promotor público, era irmão dos meus tios, era marido da minha mãe, era outro pai para minhas irmãs, era contista, era poeta, era amigo de um monte de gente, era brigado com outros... eu só conheço um aspecto dele e sei pouco dos outros. e, sabe de uma coisa? não me interessa, não estou biografando ninguém.

isso aqui é um blog de memórias. as minhas, dele.

então: geraldo era filho de dona stella e de seu ernesto. o mais novo dos homens. tinha muitos irmãos. alguns já morreram. ficaram quatro vivos, os três mais velhos e a irmã mais nova.

casou com maria helena e teve três meninas, três marias.

tem quatro netos: um menino, três meninas.

me deixou muito cedo e com uma certa inveja das minhas irmãs: elas tiveram mais tempo de pai do que eu.
fiquei esta semana sem escrever porque o computador quebrou de novo. coisas de um bicho que ainda não foi domado? de vez em quando ele surta e eu fico muda por estas bandas.

msa é a semana do dia dos pais. a véspera. e eu fiquei meio apreensiva de passar essa data e eu não falar nada. mas aqui o dia dos pais - ou melhor, o dia do meu pai - é sempre.

para quem chegou agora, ele se chamava geraldo. teve um derrame aos 60, passou cinco anos em coma vigil (dorme, acorda, mas sem consciência e nem condições de se comunicar) e morreu. resumindo assim, não é nada. mas eu tinha 17 anos quando ele adoeceu, 23 quando ele morreu e até hoje ele faz falta.

e para não deixar de falar do assunto que movimentou o brasil esta semana, sim, me vi um pouco no jeito que roberto marinho falava do pai dele. aos noventa e tanto e o pai ali, pertinho. o jornal nacional falou em saudade de órfão. não, eu não me sinto órfã. meu pai não está aqui em pé ao meu lado e nem vai ganhar presente amanhã. mas como eu posso ser órfã se para mim ele não morreu?

ele está longe, um outro plano, outra realidade, está dormindo, não importa muito. porque ele está vivo em mim. na filha mais parecida, na filha mais nova. como está vivo em minhas irmãs.

então eu digo aqui as pequenas coisas que fizeram meu pai ser importante para mim. os pequenos detalhes de uma vida. que ele gostava de beber água misturada: um copo com metade de água gelada e metade de água do filtro. (água natural, ele dizia)

e é isso. porque a memória é fugidia e as palavras escritas não são.

feliz dia dos pais.

3.8.03

papai gostava de jogar "21 de boca". era um jogo no qual duas pessoas iam dizendo números e fazendo somas, quem chegasse primeiro em 21 ganhava. E ele tinha uma regra meio secreta: quem dissesse 14 primeiro sempre ganhava. era algo assim: Um. Um mais três, quatro. Quatro mais cinco, nove. Nove mais dois, onze, Onze mais três, quinze, Quinze mais seis, vinte e um, ganhei.

assim parece bobo, mas na hora era engraçado. Papai tinha umas táticas para vencer, e nunca deixar a outra pessoa chegar fácil em 21. Parece que só podia dizer números de um a sete, mas quem disse que eu lembro com clareza?

Essa era uma maneira fácil de fazer contas de cabeça e não apanhar do professor na hora da sabatina de tabuada...
coisa que deixava papai injuriado era menino pedir esmola chamando ele de "seu Zé"
Ele virava com uma cara feia e dizia "Seu Zé é o homem do picolé"

note-se o quanto ele era educado na frente da gente. pela cara, o que ele pensou devia ser um palavrão desses bem cabeludos...

2.8.03

papai gostava de pescar. vara e anzol, molinete e samburá.
ele pescava com lu, minha irmã mais velha.
água do mar na altura do joelho. ela guardava as iscas numa bolsinha presa no biquíni.
e daí o sol? e daí a pele ardida dele?
ele gostava.
lu, mais morena, bronzeava.

nisso, eu nem era nascida.
uma vez ou outra na vida a gente surta.
eu surtei uma vez por conta de papai. deixa explicar melhor:
papai voltava para casa depois de mais um tempo no hospital. e a garagem do prédio era baixa, a ambulância não entrava. começou um certo aperreio, mas os enfermeiros tiraram a maca, fomos pegar uma cadeira de rodas, abrir a porta do elevador, avisar em casa que papai estava voltando.
aí deu-se o surto.
chegaram duas pessoas perto de papai. dois moradores de rua, acho. e eu rodei a baiana com uma fúria que eu não sabia que existia em mim.
sim, ambulância chama a atenção e as pessoas são curiosas. sim, morbidez é parte do ser humano.
e quem disse que eu lembrei de nada?
não racionalizei chongas, virei bicho.
virei fera para defender meu pai.
não lembro de muita coisa, só de gritar que aquilo ali não era circo. era meu pai.
depois do surto, suada e muito cansada, subi em casa, papai já instalado no quarto, tomei um copo d´água, mamãe atônita, os enfermeiros pasmos.
respirei fundo.
desci e fui falar com o porteiro.
pedi desculpa.
e disse que papai era fraquinho, podia pegar fácil uma infecção, a gente não sabia quem eram aquelas pessoas nem o que elas poderiam fazer para prejudicá-lo.
e que de uma próxima vez, ele avisasse que não era para ninguém chegar perto da ambulância.
frase de papai quando queria desconversar: "quem muita coisa quer saber, fuxico quer fazer"
saindo de recife e indo para o interior, no caminho de Paudalho, você pode ver um cruzeiro branco lá no alto e umas palmeiras do lado. palmeiras imperiais que meu pai plantou quando eu tinha cinco anos.
as pessoas diziam que eu era forte. que passei no vestibular no meio do caos da doença de papai. que eu ainda ria, brincava.

não era força. era não ter outro jeito.

tem tempo, eu soube que uma das regras básicas de qualquer cerco a uma cidade inimiga é deixar uma saída pro povo atacado fugir. porque, quando não há saída, o único jeito é lutar. e, lutando, vencer. podendo fugir, a coisa muda de figura.

não fui forte nem poderosa nem nada espetacular. simplesmente não tinha outro jeito senão tocar a vida.
depois dos dois posts abaixo, eu achei que tinha dito tudo o que precisava, e pensei em parar o blog por aqui. nesses dois posts eu resumi muito do que eu passei e tive a sensação de "missão cumprida".
só que já passou.
eu continuo querendo falar.
minha escrita aqui não é para dar lição de vida, é para seguir o caminho das minhas lembranças, que vão se repetir ou aparecer aleatoriamente.