31.1.03

meu pai tinha uma pele tão fina na boca que às vezes o bigode feria os lábios. ficava um pontinho de sangue.

meu pai tinha cabelo escuro, mas o bigode era branco.
meu pai era ridicularizado pelos amigos porque não bebia nada. só tomava coca-cola e guaraná. ele não gostava de cerveja, nem de uísque, nem de champanhe, nem de cidra, nem de nada. só de vez em quando tomava um cálice de licor de menta e muito raramente dois dedinhos de vinho do porto.
meu pai comprava gladíolos e tortas todo sábado.

meu pai tinha gravatas horríveis.

meu pai usava pijama de tecido, com "paletó de pijama"

meu pai perdia a carteirinha vermelha de promotor praticamente todos os dias.

meu pai cortava o cabelo sempre que ele crescia ao ponto de tocar no colarinho da camisa dele.

meu pai gostava de cafuné e não gostava do mês de abril.

uma vez meu pai ia me contar um segredo, mas mudou de idéia.

22.1.03

hable con ella, almodóvar.

falei tanto com meu pai. uma vez, coração partido, 19 anos, faculdade, aquela dor me sufocando, me abracei, pai, o que é que eu faço, eu quero ele, ele não me quer.

outras vezes era só o gesto de carinho, como incluir seu nome no amigo secreto de natal.

outras era um gesto de temeridade: uma colherinha de chá de iogurte de morango, com medo dele engasgar, só para que ele tivesse algum sabor na boca.

outras vezes, tantas outras. falei com ele. falei muito com ele. na despedida, eu sozinha em frente ao caixão numa madrugada imensa de dor de cabeça e saudade, falei com ele a noite toda e de repente o dia tinha amanhecido e eu não notei.
hoje eu entendo.

um paciente de 60 anos, obeso, com um enfarte e um derrame no prontuário, fumante desde os 14, hipertenso e sedentário não teria grandes chances de acordar lúcido e em boas condições físicas depois de uma cirurgia cerebral.

mas aos 16 anos isso era tudo que eu pedia a Deus, e tinha certeza de que meu pai ia ficar bom. certeza, mesmo, não, era mais uma vontade muito forte. era uma coisa em que eu me agarrava, esse pensamento.

não há como ser objetiva e fria como hoje. porque já vivi o dobro dos meus 16 da época em que meu pai teve o derrame que o deixou cinco anos em coma, antes de morrer.

12.1.03

meu pai dizia:
palavra dita
pancada dada
oportunidade perdida

não têm volta.

9.1.03

meu pai tinha os dedos amarelos de nicotina. e um calo no dedão da mão direita, que ele gostava de morder.

ele também gostava de "café pequeno": dois dedos de cafezinho numa xícara grande.

ou de tomar café com leite com bolacha sete capas. ele quebrava a bolacha, botava dentro do café e ela empapava. ele comia com colher e depois derramava o café no pires, inclinava o pires e bebia. minha irmã tinha siricotico se via isso.

8.1.03

meu pai gostava do número 21, pq ele nasceu num dia 21.

meu pai gostava que eu cantasse para ele dormir. e me fazia decorar as músicas que ele gostava.
o apelido do meu pai, desde a infância, era lalo.

meu pai torcia pelo náutico.

meu pai fumava carlton. vários maços por dia.

meu pai tomava remédio pro coração. primeiro isordil. depois outro que não lembro o nome, que vinha numa caixinha cor de rosa. eu guardava as caixinhas vazias e dividia o conteúdo das cheias nelas. espalhava as caixinhas pela casa: onde ele passasse mal sempre teria um remédio por perto.

meu pai sempre mandou:
tomar um copo de água depois de chupar manga
calçar primeiro o pé direito do sapato
tirar nota boa na escola
eu tinha este blog no weblogger, mas ele acabou. agora no blogger eu vou ter mais cuidado. até pq perdi os posts que escrevi lá, e eu não quero que isso aconteça por aqui.

eu escrevo este blog pro meu pai. ele já morreu. eu estou esquecendo algumas coisas, e quero mantê-lo vivo na lembrança como está vivo no coração.

meu pai se chamava geraldo, era o filho homem mais novo entre nove irmãos, nasceu em 1927 e dois anos mais tarde meu avô foi posto para fora de casa por minha avó - é a lenda da família - pois havia perdido dois engenhos de cana em jogo e cavalos. meu pai só conheceu meu avô - que se chamava ernesto - aos 18 anos, quando foi visitá-lo em alagoas, onde ele morava. acabou passando um tempo por lá, coisa que a lenda da família chama de "fugiu de casa".

não sei se meu avô teve outros filhos lá pelas bandas de maceió.

só sei que meu avô era amigo do farmacêutico que tinha duas filhas bonitas: uma loira, uma morena.

meu pai casou com a morena.