25.6.03

meu pai contava duas histórias para eu dormir.

uma era do pastorzinho que tinha um rebanho com muitas ovelhas, muitas mesmo, e precisava passar o rebanho por uma ponte muito estreita e muitíssimo comprida, pois do outro lado tinha um pasto muito verde para elas comerem. e então o pastorzinho só podia passar uma ovelhinha por vez. e então a primeira ovelha começou a passar.

....


pai, continua a história.
não posso, a primeira ovelha ainda está atravessando a ponte.


a outra história é a da menina chamada você. ai, como eu tinha raiva dessa. não lembro de nenhuma história, só da confusão da menina você, que não era eu, você é o nome dela.
meu pai gostava que eu cantasse "juazeiro, petrolina" para ele. ele trocava o nome das cidades pelo das netas: eu gosto de ana luiza e adoro a marina.

24.6.03

teve um aniversário do meu pai que eu fingi que esqueci, para fazer surpresa depois. não falei nada durante o dia. de noite eu ia dar o presente e ver um sorrisão.
qual o quê.
mamãe veio me avisar que ele estava tristíssimo, achando que eu tinha esquecido dele. e não era nem de tardinha, derreti e contei o plano que deu errado.
"nunca mais faz isso, minha filha"

23.6.03

Luar do Sertão
Catulo da Paixão Cearense

Oh, que saudade do luar da minha terra, lá na serra,
Branquejando folhas secas pelo chão!
Este luar cá da cidade, tão escuro,
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão.

Não há, oh, gente, oh não
Luar como esse do sertão
Não há, oh, gente, oh não
Luar como esse do sertão

Se a lua nasce por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata prateando a solidão
E a gente pega na viola que ponteia,
E a canção é lua cheia a nos nascer do coração

Quando vermelha, no sertão, desponta a lua,
Dentro d'alma, onde flutua, também rubra, nasce a dor!
E a lua sobe, e o sangue muda em claridade,
E a nossa dor muda em saudade, branca assim, da mesma cor!

A gente fria desta terra sem poesia
Não se importa com esta lua, nem faz caso do luar
Enquanto a onça, lá na verde capoeira
Leva uma hora inteira vendo a lua, a meditar

Ai, quem me dera que eu morresse lá na serra
Abraçado à minha terra e dormindo de uma vez
Ser enterrado numa grota pequenina
Onde à tarde a surunina chora sua viuvez
noite de são joão.
a festa que meu pai mais gostava, a festa que eu mais gosto. espero que ele esteja vendo a festa nas cidades pequenas, com as crianças de chapéu de palha, com a fogueira queimando, e se lembre de mim, dos meus vestidinhos e do chapéu de trancinha.
são joão é uma festa alegre por definição. não se perdeu como o carnaval, não é agridoce como as festas de fim de ano. são joão é feito de cheiros: de amdeira queimada, de milho cozido, de pólvora.
de barulhos de traque de massa e peido-de-véia.
de muitos risos.
de procurar canto escuro para acender a estrelinha, o pé-de-pinto.
de dançar a quadrilha mais desajeitada possível.
de botar a cadeira na calçada e conversar com os vizinhos.
meu pai amava são joão. eu também amo.
e sempre vou lembrar dele neste 23 de junho, mesmo que eu esteja sem fogueira, sem milho, sem crianças e ouvindo luiz gonzaga em mp3.

meu pai menino no são joão, da minha idade.
eu menina, da idade do meu pai, pedindo que ele me pegasse um pedaço de madeira com a ponta em brasa para acender meus fogos, ou a ponta do cigarro.

meu pai indo comprar a lenha da fogueira, tantos anos atrás, em 86. uma vida inteira, meu pai, e eu fico prendendo o choro pois esta noite é de alegria. pois seu aniversário faz poucos dias, mamãe fez canjica, debulhamos o milho - eu fiquei tirando os cabelinhos das espigas do milho que a gente plantou dia de são josé, lembra?

uma vez eu fiz trança em todas as espigas de milho dos pés que plantamos no quintal. ele só riu. mamãe achou estranho.

pai, pai, que falta hoje. o dia de hoje é de alegria, me faz ouvir tua risada só mais uma vez.

21.6.03

21 de junho, aniversário do meu pai.

19.6.03

e junho tá aqui, já passou da metade, dia 21 seria o aniversário de 76 anos do meu pai. nossa, ele seria velhinho.
um velhinho brabo.

junho é festa de são joão e minha mãe fazendo canjica e decorando com losangos de canela em pó ou as letras G H.

junho é frio. é cheiro de madeira queimando, de pólvora, barulho de fogos, gritos de crianças e sanfona.

um junho, eu era menina, nós fomos para um convento em carpina, tinha hospedaria lá, eu acho. e eu usava um tamanco vermelho. como eu gostava desse tamanco vermelho... e tinha um senhor que tinha lutado numa guerra. que guerra? que idade esse senhor teria? aos meus olhos, era velho. a mulher dele pediu às crianças que não brincassem com fogos perto dele, que ele tinha ido à guerra. e que os fogos lembravam bombas e ele ficava nervoso. lembro quase nada desse são joão, só do homem que foi à guerra. isso era 77, 78? será que ele lutou no vietnã? na coréia? na segunda guerra? será que tinha sido aqui no brasil mesmo?

eu era bem pequena. era festa de são joão num sítio de algum amigo do meu pai. eu queria acender uma estrelinha. de alguma maneira a porta do carro estava aberta. eu pedi para o meu pai me dar o cigarro, para eu acender a estrelinha na brasa.
a porta do carro tinha daqueles bolsos com elástico. de alguma maneira o cigarro caiu lá dentro e pegou fogo. eu lembro da minha mãe correndo com um jarro - acho que de limonada - para jogar na porta do carro e apagar o fogo. lembro que eu chorei muito.

mas o que faria um jarro de limonada numa festa de são joão? não se bebe limonada no são joão.

4.6.03

bença, pai.

uma das últimas poesias que eu escrevi foi para você. para o senhor. quer dizer.

bença pai.

a poesia tá numa pasta onde tem uma menina sentada no chão com patins, tudo muito em tom pastel, muito menininha.
escrevi pouca poesia depois dessa.

bença, pai. que saudade de dizer bença, pai. deus abençõe, filha.

teeeeela!

senhor!

me faz um café pequeno.
acende a luz.
canta aquela música prá mim.

tela, me benze.
"geraldo, você em pé e seus inimigos deitados. mais do que deus, ninguém."
Deus é com maiúscula, menina.
Sim, pai. Deus, Deus, Deus, Deus e Deus. Cinco vezes para nunca mais escrever errado.

ô Leeeeeeeeeeeena!
Mainha saiu, pai.
Prá onde?
Foi na vizinha.

Teeeela!
Senhor!
me traz água misturada.

Pai, como você pedia coisa. e às vezes eu era a má-vontade encarnada em gente.

Pai, dá dinheiro?
De novo? Prá quê?


Uma vez, pai, você voltou de recife e me trouxe o disco da madonna. o primeiro. eu fiquei boba.não tinha tido coragem de pedir. e o senhor me deu assim do nada: a vendedora disse que vocês gostam dela.

Como de uma vez que eu sentei no chão e ouvi legião urbana com minha mãe, explicando tudo.

E da outra vez que o senhor entrou no quarto e disse que a música que eu tava ouvindo era bonita.
pena que eu não lembro que música era.

e da vez que o senhor penteou meu cabelo.
e da vez que o senhor quis pintar ele de louro, lembra? botei um bico desse tamanho, quase chorei, eu tinha 16 anos.

e do senhor me dizendo que moça elegante tem que saber andar de salto alto.
ih, pai. eu de salto alto pareço uma pata com labirintite.

bença, pai. te amo muito. muito, muito, morro de saudade.



depois que eu escrevi, me lembrei que chamava mais painho do que pai. mas não quis mudar.

2.6.03

chegou junho. o mês mais lindo do ano, que tem festa de são joão.
gosto mais de são joão do que de carnaval, natal, ano novo. só perde pro meu aniversário.

junho começa com frio e cheiro de pólvora. incrível como cheiro de pólvora e de madeira queimada me faz feliz: os fogos e as fogueiras, os balões subindo. o trabalho de descascar espigas de milho, de fazer comidas, os risos.

e em 21 de junho é o aniversário do meu pai, iniciando os festejos.

as bandeirinhas de papel de seda coladas com farinha de trigo misturada com água - o grude clássico lá de casa.

junho. fogueiras, risadas, estrelinhas, peido-de-véia, vulcão. e sempre alguém com um bombril aceso amarrado num cordão girando girando girando.

as crianças e a quadrilha. com a filha de joão antônio ia se casar.

as adivinhas, uma vez enfiei a faca na bananeira à meia-noite, que medo, no quintal escuro, para ver a letra do meu futuro marido. rezando o salve-rainha até mostrai. choveu, não teve letra.

junho é o mês das saudades mais lindas.