29.9.03

ah, esse meu pai. lembrei de quando estudava catecismo e a história de adão e eva. ele disse que eu não acreditasse que o homem foi feito de barro, contou da evolução das espécies, e que na bíblia tava escrito daquele jeito porque era a tradição oral de um povo antigo, que as imagens tinham que ser simples para serem compreendidas... um povo que que não tinha a ciência que hoje se tem, e falou que no interior tem gente que jura que o homem não pisou na lua e que a terra não gira em torno do sol não senhor. e que eu imaginasse a cabeça dura daquele povo naquela época. e que muito do que estava escrito no antigo testamento era só um código de conduta para aquela civilização. que não se podia imaginar hoje se ter escravo ou mandar apedrejar filho desobediente.

ou seja: ler com distanciamento crítico.

e eu tinha nove anos quando ele me disse isso. as palavras podem ter se apagado, mas a idéia está aí, firme e forte.

27.9.03

você, que tem pai, que está me lendo, não pense que pelo amor que tenho pelo meu pai eu sou ou fui cega. sei de seus defeitos, do autoritarismo. mas até para isso eu olho com carinho. porque ele foi uma pessoa completa. homem nenhum ocupa o lugar de pai que é dele por direito e por minha admiração.
seu pai tem defeitos. o meu tinha.
somos humanos, todos. cada qual com uma qualidade a mais do que o número de defeitos. eu também tenho os meus, e espero que a vida transforme a maioria deles em qualidades. sou humana, falível, já pisei tanto na bola que nem sei.
mas você, que me lê, que tem pai, que se emociona com o que eu escrevo, saia da frente do micro, vá dar um beijo nele, ligue para dizer oi, faça alguma coisa agora.
porque sempre pode ser tarde demais. e depois que a pessoa morre, já dizia meu pai, não adianta nada.
não adiantaria nada escrever sobre ele se eu não o tivesse amado em vida. com seus defeitos, apesar deles, e até por seus defeitos também.
sim, briguei com ele, bati porta, xinguei baixinho, achei que ele foi injusto, feio, chato, burro, castrador, o caramba. mas isso em nenhum segundo apagou o amor que eu sempre tive e o respeito que ele sempre mereceu.

não espere que seu pai seja perfeito, ele não é. nem sua mãe, nem os avós, nem seus irmãos e mais ninguém no mundo. e nem caia na fantasia de que você é o único que está certo no universo.

pare de julgar, se está julgando. não importa se ele deu motivo. se as coisas não chegaram a níveis catastróficos, pare de ler e vá viver esse amor.
na missa de sétimo dia eu desabei tudo que vinha segurando. tudo não. nem a ponta do iceberg, mas eu desabei.
foi quando o padre disse que a missa era pela alma de geraldo.
meu pai tinha virado alma.

não deu para segurar o choro.
falo dele vivo, com saúde incerta, com defeitos e qualidades. porque os cinco anos de coma foram pesados demais para reviver aqui.

25.9.03

papai ia fazer 50 anos. eu tinha seis.
quando eu soube do aniversário, redondo, importante, fui logo planejando a festa. porque não seria festa sem graça. era o aniversário do meu pai. então ia ter bola, bolo, brigadeiro.
não houve quem me fizesse mudar de idéia. e os 50 anos do meu pai foram festa de criança.

22.9.03

papai me prometeu muita coisa e não cumpriu.
viagem para a disney, coleção de monteiro lobato, boneca gui-gui, bicicleta.
isso é o que eu lembro agora e não envolve a famosa frase "quando puder eu dou", pois quando ele dizia isso, melhor chorar na cama que é lugar quente.
ele também tinha prometido, sem palavras, estar ao meu lado quando eu passasse no vestibular, quando eu me formasse, me dar o braço ao entrar comigo na igreja no dia do meu casamento e ser um avô maravilhoso pros meus filhos que ainda vão nascer.

mas ele não prometeu me dar amor, ele me amou. não prometeu me dar educação, me educou. não prometeu estar escondido nos meus gestos, mas está: no jeito que eu tomo café com pão, no gosto de escrever, de ler, de conversar.
essa aconteceu quando eu tinha 15 anos.

eu e meu primeiro namorado.

bão, eu e meu primeiro namorado estávamos conversando no jardim de casa (oh que romântico) sentados num batente bem em frente da janela do meu quarto.
quem me contou foi a empregada da época, não lembro o nome dela.
pai que tem filha namorando pela primeira vez é um ser surtado por definição.
pois tava papai andando pela casa, passou na frente do meu quarto e ouviu vozes.
esqueci de dizer que pai que tem filha namorando pela primeira vez também tem ouvido de tuberculoso.
e que adolescente não é conhecido por falar baixinho.
pois a empregada me disse que ele estancou na frente da porta do meu quarto, fez um sinal para ela ficar quieta e abriu a porta de sopetão.
deu de cara com um quarto vazio, claro.
ficou com uma cara indefinida - decepção, alívio? e disse para ela não me dizer nada.

claro que assim que ele virou as costas ela me contou tu-di-nho.

19.9.03

já recebi e-mails dizendo que têm inveja do jeito que eu falo do meu pai, com carinho, até dos defeitos dele eu sinto falta.
Sinto muita falta dele. Mas acho que sentiria mais se ele não tivesse sido o pai que foi. Deixa explicar melhor:
Um amigo dele - mas será que eu já contei esta história aqui? - não era afetuoso com os filhos. tinha medo de morrer e deles sofrerem. e contou isso ao meu pai, dizendo que à noite, quando os filhos dormiam, ele ficava olhando e se acabando de tanto amor por eles.
tive pena desse homem, e mais pena dos filhos dele. papai falou, na bronca que deu no amigo, em "órfãos de pai vivo". a expressão é tão certa!
sentiria mais falta do meu pai se ele não tivesse sido meu pai. porque minha saudade é cheia de vida e amor.

18.9.03

verbenas.
um canteirinho de verbenas me fez lembrar de papai.
ele plantou muitas verbenas roxas, rosas e brancas no jardim de casa.

15.9.03

Menininha
Vinícius de Moraes/Toquinho


Menininha do meu coração
Eu só quero você
A três palmos do chão
Menininha não cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão

Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim e você
Vai sofrer de repente
Uma desilusão
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão

Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
Também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu não dei...


difícil não me emocionar com essa música!
outro dia, no supermercado, ouvi alguém assobiando "fuíiiêee"
meu pai assobiava assim, no supermercado também, para juntar a tropa na hora de ir pro caixa.

lá em recife tem o supermercado bompreço. naquele da praça da capunga (ô nominho...) eu ia com meu pai quando ele ia fazer as compras. isso nos anos 70. a gente parava e tomava um sundae com calda de groselha na lanchonete do supermercado. depois, quando ele ia para o caixa, eu ia para a banca de revista no estacionamento, sozinha, escolher os gibis que ia levar para casa. ele pagava e eu ia tentando ler no carro, mesmo de noite, esperando passar por um poste para poder olhar melhor a revistinha.

sempre fui impaciente com minhas leituras preferidas ;)
papai gostava de paulinho da viola. dizia que ele cantava sorrindo.
papai e mamãe eram recém-casados.
papai não sabia que mamãe tinha cólicas horríveis, que a deixavam de cama por três dias, vomitando, um inferno.
aí quando ela teve a primeira cólica depois de casada, teve vergonha de dizer a papai o que tava acontecendo.
anos 50, vocês bem sabem. não se dizia nada.
e mamãe passando mal.
e papai se preocupando.
e mamãe passando mal.
e papai assustado, dizendo que ia levá-la para o hospital, e ela pedindo pelamordedeus que ele não fizesse isso, que não precisava.
e nada dela melhorar e papai ficando cada vez mais nervoso.
até que ele chamou a mãe dele, Vó Stella.
Vó Stella conversou cinco minutos com mamãe, a sós.
Quando saiu do quarto, olhou para papai de cima a baixo. "Isso é assunto de mulher. Deixe Helena em paz."

E tudo ficou resolvido por isso mesmo.
sabe aqueles tênis que fecham com velcro?
quando lançaram, no auge da novidade, anos 80, papai comprou um par.
papai tinha um pé difícil de achar sapato que não incomodasse. o peito do pé era alto, uma corcovinha. então o tênis de velcro calçava perfeitamente.
e tinha uma vantagem:
ele fazia barulho e dava sustinhos na minha mãe.


eu digo, papai era um adolescente.

12.9.03

depois que aposentou, com muito tempo nas mãos e pouca coisa na cabeça, meu pai danou de ligar pro disque-amizade. e ficava horas dizendo que se chamava alberto e era um advogado de 30 anos (isso, com voz de 60, dizendo que tinha 30. coitado, iludido...)
aí minha mãe pegou ele no pulo.
minha mãe é desse tamainho. na hora da raiva ela cresce. acaba com você sem elevar o tom de voz nem despentear o cabelo. apesar das aparências, nas quais papai era deus e senhor do universo familiar, ele morria de medo de fazer mamãe ficar com raiva de verdade.
pois mamãe acabou com ele.
eu ouvi um tiquinho da briga. briga não, lição de moral.
"geraldo, você tem uma filha mocinha em casa. isso é exemplo que se dê?"

papai, o deus do trovão, do grito, da lei, recolheu-se à sua insignificância e nunca mais ligou pro disque-amizade quando eu estava em casa e mamãe também.


"minha filha, eu prefiro enfrentar dez júris seguidos a ter uma briga com a sua mãe"
vó stella, mãe de papai, coava café no pano.
e ele estranhava uma coisa: o café feito de manhã era sempre mais gostoso que café feito à noite.
ele tinha uma teoria: o pano do coador tava limpo pela manhã e de tarde era reaproveitado, mas nunca pôde comprovar.
lá em recife tem uma delicatessen centenária chamada casa dos frios.
quando papai ia lá a coisa não prestava, voltava carregado de besteira.
eu achava ótimo, claro.
besteiras importadas do mundo todo, chocolates ingleses lindos e não tão gostosos, delícias tipicamente pernambucanas... (bolos, queijos, algumas comidas salgadas)
mas teve uma coisa que ele não pôde comprar porque mamãe não deixou. era uma caixa de chocolates importados que, a cada chocolate que você tirava, tocava uma musiquinha.
não, eu não vi, ele que me contou.

e a torta saint-honoré que ele comprava todo sábado na doceria tia dondon. não lembro mais o gosto, só que vinha com profiteroles em cima. sábado também era dia dele comprar flor. geralmente gladíolos brancos, que ficavam num jarro grande no canto da sala.

7.9.03

amanhã seria o aniversário da minha vó, mãe de mamãe. vó maria. 99 anos, se estivesse viva. papai implicava com ela tanto e tanto. implicava sem maldade, pelo gosto de ver mamãe exasperada.

meu pai era um adolescente preso no corpo de um respeitável promotor.
uma das manias do meu pai era tirar slide. isso. há centenas deles na casa da minha mãe, e umas dúzias são fotos minhas.
andei pesquisando quanto custaria passar esses slides para fotos: R$ 6,00, em média. Fiz uma avaliação por cima, só os que eu mais gosto, revelados, daria uma conta de quase duzentos reais.
tou fora, por enquanto.
e, claro, não tenho projetor.

mas estou eu nas fotos, pequenininha, com um carrossel de brinquedo que eu nunca vi na vida, e na moldura do slide, com a letra dele, Maria Stella.

ôoooo....

Anos 70, imagine o cafonê das fotos. minhas irmãs ainda adolescentes. algumas crianças impossíveis de identificar. mas ele não aparece em nenhuma, claro. ele estava do outro lado da câmera.

1.9.03

viajei este fim de semana para rio das flores, cidade a quatro horas de distância do rio de janeiro, no alto da serra das araras.
um fim de semana familiar: eu, fred, seu edilberto, pai dele, dona heliette, a tia, claudinha, a irmã. e perpétua, que foi babá dele e até hoje trabalha lá.
cidadezinha do interior. o avô de fred, seu valdemar, construiu a casa. o pessoal vai lá desde 1957. logo, todo mundo conhece todo mundo na cidade.
e fui apresentada a todo mundo, claro.

cidade do interior: pessoas se cruzam na rua e dizem bom-dia, mesmo sem se conhecer.

adoro isso. fui criada numa cidade do interior. e as velhinhas olhavam fred e diziam que tinham visto ele pequeno.

lembrei muito de papai nessa viagem. a gente tomando café na mesa da cozinha. daí já era dez e tanta. tome gastar canelinha subindo e descendo ladeira (mas como tem ladeira!). almoçar, jogar conversa fora, tomar cafezinho e já eram três da tarde. mais conversa, daí a pouco comprar pão, e mais conversa na mesa depois do jantar. muitos causos.

queria que ele estivesse ali comigo, como estava meu sogro. rindo e brincando e conversando com todo mundo na rua. igualzinho ao velho Geraldo.