26.11.03

papai fumava tanto que tinha até um versinho que ele inventou: meu coração é de jesus e o meu pulmão é da souza cruz.

e a gente brincava dizendo que, quando ele parasse de fumar, a souza cruz ia pedir falência.



a gente se acostuma com a ausência.
mas sempre vai faltar um pedaço.
um filme que a gente quer comentar. o colo, o abraço, o cuidado. ou a bronca.
uma comida que a gente gostou. se estivesse perto, o quanto seria dividido.
mas fica a intenção, o gesto, o carinho.
mas fica a ausência, o acostumar à força porque não tem outro jeito.
e nisso tudo fica agridoce a vida.
que continua.
com gente nascendo que não o conheceu.
e com uma saudade danada.

20.11.03

tive um pesadelo com meu pai.
roubavam a casa da gente e ele dizia que eu que tinha deixado os ladrões entrarem.
levaram a mesa de jantar, as cadeiras, a estante, a tv, o sofá...
e eu dizia que não sabia de nada, estava dormindo.
ele estava furioso. ligava para a polícia. e eu dizia prá ele ligar para o promotor de caruaru - cidade próxima de surubim, onde a gente morou e morava no sonho - para avisar do assalto.
e ele dizia que eu sabia que os ladrões tinham ido prá lá, por isso dava a dica.
e eu respondia que era pura lógica! os bandidos não iam vender nossos móveis em surubim, que iam ser descobertos.

mas que coisa, pai. como vc pode achar que eu ia ajudar ladrão?

16.11.03

eu queria ter dito isso.


como eu não sei fazer permalink, é o post de 26 de outubro.

15.11.03

hoje é aniversário de uma dor. o dia em que papai morreu.
mas é uma dor diferente. a ausência de sua mente aconteceu antes. cinco anos antes dele morrer, no momento em que ele não voltou do coma.
num 15 de novembro muito tempo atrás morreu o corpo do meu pai.
e foi uma dor seguida de um alívio estranho, pois seu sofrimento terminou ali.
e o nosso também.

num 15 de novembro meu pai saiu do cais e se lançou no mar.

5.11.03

cantei muito para ele essa música. e ela parece com ele. um menino na pele de um pai de família, respeitável promotor público.

Um homem também chora (Guerreiro menino)
Gonzaguinha

Um homem também chora
Menina morena
Também deseja colo, palavras amenas
Precisa de carinho, precisa de ternura
Precisa de um abraço da própria candura

Guerreiros são pessoas tão fortes, tão frágeis
Guerreiros são meninos no fundo do peito
Precisam de um descanso, precisam de um remanso
Precisam de um sono que os tornem perfeitos

É triste ver esse homem, guerreiro, menino
com a barra do seu tempo por sobre seus ombros
Eu vejo que ele berra
Eu vejo que ele sangra
a dor que tem no peito
pois ama e ama

Um homem se humilha se castram seus sonhos
Seu sonho é sua vida e vida é trabalho
E sem o seu trabalho o homem não tem honra
E sem a sua honra se morre, se mata
Não dá pra ser feliz
ele me deu muita coisa.
ele nem sabe.
e eu vou descobrindo aos poucos que no meu sangue corre o sangue dele. que meu pai está em muito do que sou.

e sinto falta dele. e procuro vê-lo como um homem com certezas e dúvidas, e erros e acertos, e medos que não admitia.

não quero meu pai um homem perfeito, pois não era. e sua beleza estava na sua imperfeição. ele não foi nada mais nada menos que um homem. um homem de sua geração, um homem machista, mandão, às vezes um menino dentro de ternos e responsabilidades. um homem sonhador. um homem que escrevia contos e poemas. um homem que gostava de ser autoridade. um homem que foi um avô babão. um homem que gostava de dar presentes. um homem que dizia não só pelo gosto de ter autoridade de dizer não. um homem que não se cuidou como devia, para viver mais e sorrir mais e ver as crianças crescerem. um homem que implicava como ninguém e que tinha um coração que podia ser imenso ou pequenininho, só bastava que ele se sentisse ofendido. que achasse que não lhe davam a devida importância, o devido respeito. e às vezes, muitas vezes, brigava com duas filhas e passava um tempo só gostando de uma. um homem que cuidava com carinho da mulher. um homem que era cabeça-dura e tinha vida dupla. um homem que dizia não pode. um homem que dava lições de moral. um homem que tinha uma conversa boa, que dava para esquecer que era meu pai quem falava. um homem que gostava de implicar com minha mãe só para ver a sua irritação, para no instante seguinte dizer que estava brincando. um homem que gostava de fazer feira e trazer coisas bonitas para enfeitar a casa. um homem cheio de manias. um homem de sessenta anos que parecia ter dezesseis. um homem que morreu sem nunca ter lavado um prato na vida. um homem que queria almoço na mesa quando chegava. que ficava sentado no chão, de pijama, fumando e bebendo cafezinho em xícara de café grande. que tinha cabelo ralinho, bom de passar a mão. que lia luluzinha e bolinha. um homem que me amou muito. que teve tempo para mim. que me contou histórias, que me botou para dormir, que escolhia minhas roupas, que não me deixava ir ao cinema com as amigas e que não gostou quando eu comecei a namorar. e que tinha orgulho do que eu escrevia. que penteou o meu cabelo, um dia de tarde. que disse que eu era bonita.

um homem marcado a ferro, fogo e saudade no meu coração. mas acima de tudo, um homem: meu pai.
nem menos, nem mais. imperfeito, teimoso, maravilhoso, amado.
a mãe do meu pai.

vó stella morreu em abril de 69. eu nasci em outubro de 70. quer dizer que ela nem viu a barriga.

e eu não sei muito dela.
sei que papai chorou feito menino quando ela morreu. e a vó morreu em casa, na cama dela, no quarto dela, como se fazia antigamente. com os filhos ao redor.
há uma foto da minha vó lá na casa da minha mãe.
uma senhora magra, cabelo grisalho curtinho, olhar triste e cansado.
sim, meu nome vem dela. dela e de vó maria, mãe de mamãe. maria stella, o nome das duas avós.

papai me falou pouco sobre ela. que foi moça rica. teve preceptora francesa. parentes no rio de janeiro. e que acabou o casamento, botando meu vô prá fora, por conta dos desvarios dele, imagine perder contos e mais contos de réis no jogo. depois disso, muitos anos de dinheiro curto.

outras pessoas me disseram da vó. o meu pai a amou com todas as forças do édipo, mas ela não retribuiu na mesma medida. que a vó só gostava mesmo de dois dos filhos. e que só passou a dar mais atenção a papai quando ele foi nomeado promotor, e isso que ele tava com trinta e tantos.

não tenho muito dela. a não ser o queixo empinado. talvez a cor da pele, saí à família de papai, pele alva. minha mãe diz que a única coisa que temos em comum é que somos mulheres, e que eu sou meu pai escritinho.

bem, falta o bigode. ;)

sim, eu sou muito filha dele. dos sonhos dele. e também gosto de ser obedecida, só não me agrada ser chamada de doutora, por isso nunca fiz faculdade de direito.

mas ele dizia que eu seria uma excelente promotora, pois gosto de brigar.

brincadeira. só brigo o mínimo necessário. no mais, sou uma flor de criatura.

vi na banca de flores gladíolos brancos, do jeito que ele gostava de comprar. e um dia crio coragem para fazer a receita de sorvete caseiro que ele tanto gostava: as minhas lembranças passam pela boca.
não lembro do seu cheiro, mas dos sabores que gostávamos.

uma vez ele disse para eu experimentar cebola frita, que era gostoso.
eu não gosto de cebola, disse que não queria.
e o tanto que ele insistia era o tanto que eu resistia.
até que ele perdeu a paciência e disse que ia me fazer comer um quilo de cebola frita.

nunca fez isso.
na maioria das vezes, latia sem morder.
mas quando mordia...
a mordida dói até hoje.