30.8.11

ultimamente, dei de pensar no que eu mudaria se eu pudesse mudar a vida que eu tive a partir da doença de papai.

ainda não decidi o que mudaria.

se eu simplesmente faria papai não adoecer, e ter pai até hoje, e ter uma vida tão, mas tão diferente que não consigo pensar nela, não consigo imaginar,

ou se eu faria papai adoecer uma semana antes, ou três meses depois, tudo para que eu não enfrentasse a noite do seu AVC sozinha com ele, mamãe viajando, minha irmã com a filha doente com sarampo.

o timing da doença de papai foi cruel.

então. se eu não pudesse evitar a doença, se eu pudesse mudar a data. se eu não pudesse evitar o derrame, eu faria que ele morresse mais rápido.

cinco anos de coma foi demais.

para ele, para mim e para minha mãe, que vinte anos depois ainda sofre os efeitos do tempo em que carregou o mundo nas costas.

eu seria mais misericordiosa, deus. meu pai morreria em algumas semanas. o nosso sofrimento seria intenso, concentrado, mas seria de uma vez.

cinco anos morrendo é tempo demais para qualquer um.

isso, se eu pudesse mudar alguma coisa.

vinte anos se passaram, as coisas foram como tiveram que ser. mais da metade da minha vida sem pai. a vida inteira pela frente sem pai. minha mãe doente até hoje pelos anos de medo, responsabilidade, grana curta e solidão. as coisas foram como tiveram que ser, e eu não posso mudar nada, como não pude na época.

ah, nós rezamos.
rezamos tanto.
com tanta fé, com tanta vontade, rezamos para ele melhorar.
fizemos promessas.
rezamos com os católicos, rezamos com os espíritas, rezamos com os evangélicos.
por todos os lados, enviamos nosso pedido: que papai fique bom. que tudo volte ao normal.
depois, rezamos para ter força. o caminho era árduo.
rezamos, rezamos, rezaram por nós.
em muitas cidades, muitos amigos de amigos, gente que a gente não conhecia.
correntes de oração por meu pai, por nossa família.

desnecessário dizer que nossos pedidos deram com os burros n´água.
ele não ficou bom. cinco anos de tempestade nos aguardavam, nos envolveram, nos afogaram.

a gente respirava quando dava - e fingia uma certa normalidade.

como esses pedidos foram atendidos? como essas orações funcionaram?
talvez nós tenhamos caído do trapézio e as orações foram a rede que impediu que nos espatifássemos no chão.

disso tudo, sobrou que eu não acredito mais como eu acreditava.
eu agora olho o deus com certa desconfiança.
porque tudo veio muito diferente do que a gente pediu. e admitir aqui, publicamente, fraqueza e medo é ser, obviamente, alvo para pedradas.

ninguém pode ser tão verdadeiro e não levar pedrada. ninguém pode admitir, na cara da internet, que teve medo e que já não acredita tanto assim.

a gente vive num mundo cheio de certezas demais. então eu venho aqui para dizer que tenho dúvidas. e que não saberia determinar o melhor caminho para a vida da minha família se me fosse dado o poder da escolha.

então, me basta me recolher à minha insignificância.

e celebrar a sobrevivência.

porque eu estou aqui, sobrevivente, com minhas cicatrizes. eu estou viva. eu amo, eu sonho. eu, apesar de tudo, estou aqui.