2.11.12

dia da saudade é todo dia.
ela é doce, ela é triste, ela vem nas risadas, ela vem na música.
ela corre no meu sangue, ela é metade do meu dna.
a saudade tem nome, e seu nome é meu pai.

20.10.12

5 de outubro

foi a primeira vez que eu estive em um enterro desde o começo. 

assinei papéis. escolhi, junto com a irmã dele, a roupa que ele vestiu. levei seu perfume predileto e um par de sapatos que ele não usou. protegi a irmã dele de tudo que pude. 

reconheci seu corpo pelas mãos.

é tão, tão estranho, sua pele tão fria. mandei que colocassem a dentadura, ele estava com o rosto murchinho sem ela. ele tão cinz
a. recebi as pessoas. abracei, fui apresentada a uns, vi primos, amigos de trabalho, até o camelô onde ele sempre comprava bobaginhas. chegaram coroas de flores. uma colega de trabalho chorou tanto, acho que eles namoraram um tempo.

fizeram uma prece, falaram coisas bonitas. a pessoa que fez a prece não conhecia meu sogro, cheio de vida e gritos, de vontades, de ordens, de presentes, de risadas. meu sogro, uma força da natureza.

"ele parece tão pequeno", disse o fred.

fred passou a manhã toda resolvendo a parte burocrática. cartório, xerox, papéis importantes.
fred ficou do meu lado. eu segurei sua mão. fred me abraçou.

era meu sogro, era meu amigo, era meu segundo pai.
foi triste.
foi sereno.

o enterro foi lá no catumbi, o cemitério fica numa ladeirona. subi a ladeira com o fred, o pessoal foi de carrinho, como os carrinhos dos aeroportos. ele foi enterrado numa gaveta, num canto feio e cheio de mosquitinhos de flor.

voltamos para casa, a tia foi para a casa que era dele, agora sem ele.

eu e fred viemos para nossa casa, descansamos. eram duas e meia da manhã quando o telefone tocou.

1.2.12

meu pai dizia, orgulhoso das batalhas que venceu, "o que não me mata, me fortalece".
eu, sua filha, venci umas umas batalhas, perdi outras, fugi de algumas. então eu sei que o que não me mata pode me quebrar. até agora não morri, mas tenho uns caquinhos quebrados - colados, é verdade. mas inteira, inteira, já não sou.

16.11.11

mais um 15 de novembro veio e passou. e hoje, 16, foi o dia do seu enterro. da noite que passei em vigília, com duas pessoas tão queridas na época, ana lúcia e tetê, que foram suas fisioterapeutas. ana lúcia, prima distante, tetê, sumida depois de sua morte.

aquela noite das mais longas. eu, você, um caixãozinho de criança. um velho, uma criança, uma menina de vinte e poucos, atravessando uma noite que virou manhã e eu não vi a mudança. tantos anos se passaram, pai, aquela noite ainda está aqui, guardada.

como estão guardadas todas as lágrimas, todos os gritos, toda a tanta dor que eu aperto, espremo, copacto e prendo na caixinha. e a caixinha fica ali, guardada, às vezes exposta, às vezes soterrada dentro de mim.

não quero falar muito. mas sempre falo um pouco e sempre falta muito. se eu pudesse, pai. se eu pudesse.

30.8.11

ultimamente, dei de pensar no que eu mudaria se eu pudesse mudar a vida que eu tive a partir da doença de papai.

ainda não decidi o que mudaria.

se eu simplesmente faria papai não adoecer, e ter pai até hoje, e ter uma vida tão, mas tão diferente que não consigo pensar nela, não consigo imaginar,

ou se eu faria papai adoecer uma semana antes, ou três meses depois, tudo para que eu não enfrentasse a noite do seu AVC sozinha com ele, mamãe viajando, minha irmã com a filha doente com sarampo.

o timing da doença de papai foi cruel.

então. se eu não pudesse evitar a doença, se eu pudesse mudar a data. se eu não pudesse evitar o derrame, eu faria que ele morresse mais rápido.

cinco anos de coma foi demais.

para ele, para mim e para minha mãe, que vinte anos depois ainda sofre os efeitos do tempo em que carregou o mundo nas costas.

eu seria mais misericordiosa, deus. meu pai morreria em algumas semanas. o nosso sofrimento seria intenso, concentrado, mas seria de uma vez.

cinco anos morrendo é tempo demais para qualquer um.

isso, se eu pudesse mudar alguma coisa.

vinte anos se passaram, as coisas foram como tiveram que ser. mais da metade da minha vida sem pai. a vida inteira pela frente sem pai. minha mãe doente até hoje pelos anos de medo, responsabilidade, grana curta e solidão. as coisas foram como tiveram que ser, e eu não posso mudar nada, como não pude na época.

ah, nós rezamos.
rezamos tanto.
com tanta fé, com tanta vontade, rezamos para ele melhorar.
fizemos promessas.
rezamos com os católicos, rezamos com os espíritas, rezamos com os evangélicos.
por todos os lados, enviamos nosso pedido: que papai fique bom. que tudo volte ao normal.
depois, rezamos para ter força. o caminho era árduo.
rezamos, rezamos, rezaram por nós.
em muitas cidades, muitos amigos de amigos, gente que a gente não conhecia.
correntes de oração por meu pai, por nossa família.

desnecessário dizer que nossos pedidos deram com os burros n´água.
ele não ficou bom. cinco anos de tempestade nos aguardavam, nos envolveram, nos afogaram.

a gente respirava quando dava - e fingia uma certa normalidade.

como esses pedidos foram atendidos? como essas orações funcionaram?
talvez nós tenhamos caído do trapézio e as orações foram a rede que impediu que nos espatifássemos no chão.

disso tudo, sobrou que eu não acredito mais como eu acreditava.
eu agora olho o deus com certa desconfiança.
porque tudo veio muito diferente do que a gente pediu. e admitir aqui, publicamente, fraqueza e medo é ser, obviamente, alvo para pedradas.

ninguém pode ser tão verdadeiro e não levar pedrada. ninguém pode admitir, na cara da internet, que teve medo e que já não acredita tanto assim.

a gente vive num mundo cheio de certezas demais. então eu venho aqui para dizer que tenho dúvidas. e que não saberia determinar o melhor caminho para a vida da minha família se me fosse dado o poder da escolha.

então, me basta me recolher à minha insignificância.

e celebrar a sobrevivência.

porque eu estou aqui, sobrevivente, com minhas cicatrizes. eu estou viva. eu amo, eu sonho. eu, apesar de tudo, estou aqui.

19.6.11

Mamãe foi hospitalizada. Ficou quase uma semana na UTI, pneumonia dupla. Viajei para perto dela. Ela melhorou, voltou para casa, eu voltei para o Rio.

Em casa, na gaveta de sempre, o caderno de contos do meu pai. Ele o escrevia a mão. Sua letra. Seus riscos, suas revisões, os contos que já sei quase de cor de tanto ler e reler.
Peguei o caderno. Botei na minha bolsa, pensando "antes que um aventureiro lance mão". Me imbuí de nobres intenções: "vou xerocar, vou encadernar, vou cuidar".
E, não sei o motivo, retornei o caderno ao saco plástico, à gaveta, intocado.
Se eu não contasse, ninguém saberia.

O caderno não é meu. Era do meu pai, é da minha mãe. Se um dia tiver que ser meu, será. Mas não será a sua cópia. Ela, eu não quero.

28.5.11

O Vitor Cafaggi merece um abraço por esta historinha.


O Blog do Vitor, The Amazing Adventures of Puny Parker, reconta a vida do Peter Parker, o Homem Aranha, desde a infância. E eu nem tenho palavras para dizer o quanto a historinha de hoje me emocionou...

É isso. É para isso que eu escrevo este blog. Para falar com ele, com vocês. E saber que eu sou ouvida. E saber que não é em vão.