15.5.05

o que me ficou do meu pai?

meu jeito, que é o dele; minha cor, branquinha, em contraste com minha mãe morena-jambo e com minhas irmãs que saíram a ela. Ficou meu jeito de bater o pão do lado da xícara, quando mergulho pão com manteiga no café bem doce. ficou o meu horror ao cigarro. ficou a minha pouca resistência a bebida, ele não bebia nada e me dizia que as pessoas têm que aprender a beber dentro de casa para não dar vexame na rua. ficou meu gosto por livros, mas nesse gosto tenho muito da minha mãe também. ficou o gosto por escrever, ah, esse eu tenho dele, ele foi jornalista quando moço e eu já disse aqui, o lugar onde ele se sentia mais feliz na vida era numa redação de jornal.
eu não sou jornalista. e não sou advogada, como ele foi depois. nem professora, como ele também já foi. ele foi muita coisa.
foi justo e injusto, foi amoroso e foi rude, foi o pai mais babão e o pai mais rigoroso. ele se foi cedo demais. isso ele me deve, o pai que ia me levar na igreja quando eu casasse. o avô para meus filhos. o conselho que não posso pedir. as brigas que a gente não vai ter. as brigas nas quais a gente iria se unir contra alguém, sei lá, minha irmã mais velha talvez, os dois viviam brigando. brigando de tanto que se pareciam, brigando de tanto que eram diferentes.
o que ficou dele? nenhuma imagem gravada. uma fita cassete que talvez nem rode mais. algumas fotos. algumas fotos dele doente, ao lado dos enfermeiros.
me questionei tanto quanto a essas fotos. mas desde sempre achei que era o certo a fazer. havia gente da família bem longe que não sabia como ele estava. era preciso mostrar, ele está assim, está magro, cabelo ralinho, mas está bem cuidado.
mas eu não gosto de falar dos cinco anos de doença dele.
gosto dele forte, voz alta, tomando café pequeno e dando sustos na gente.
menino grande, meu pai. menino grande, que morreu de repente, sem envelhecer.
menino grande de coração grande, capaz de muito amor, capaz de muita tristeza, muita alegria, muito segredo.
mas um menino grande, meu pai, de quem lembro o tempo todo, e por quem eu chorei pouco, se comparar o choro à saudade entalada na garganta.