28.7.03

eu já ensaiei o que ia dizer.
explicar como é que a gente convive cinco anos com o pai em coma, no quarto ao lado, com enfermeiros entrando e saindo de casa o tempo todo.
é estranho.
é estranho pois eu tomei para mim a responsabilidade da alegria da casa.
então eu falava muita besteira, organizava amigo secreto com papai no meio, entrava na ambulância dizendo que ia tocar a sirene e chorava no meu quarto, atrás da porta, luz apagada para ninguém saber.

e eu tinha raiva. muita raiva, porque era mais fácil ter raiva do que ficar triste.

e minha prima me disse o maior paradoxo da vida do meu pai: se ele tivesse se agarrado à saúde como se agarrava à vida, ele não tinha adoecido.

é verdade.

se ele tivesse deixado o doutor "mandar na vida dele", ele não teria adoecido daquele jeito. morrer, todo mundo morre, mas talvez tivesse ganho uns anos de lambuja. mas ele não ia obedecer doutor! quem mandava nele era ele mesmo! e daí deu um avc, depois de dois anos um enfarte, depois de não sei mais quanto tempo o segundo avc que virou coma vigil e a vaca foi pro brejo.

mesmo em coma, papai segurou firme cada fiapinho de vida que pôde. mas foi definhando e indo embora, aos poucos. foi ficando sem expressão, molinho, distante. quando morreu, eu acho que ele já tinha ido embora há tempos.

mas ainda assim fazia o gesto de fumar. os dedos da mão segurando um cigarro imaginário.