15.11.08

mais um ano.

10.11.08

pai, queria teu colo, queria te dar meu colo. te fazer cafuné. você pentear meus cabelos. pai, tem dias que eu penso que não te conheci. tem dias em que eu tenho certeza de que quem mais te amou fui eu. tem dias que tenho raiva. tem dias que tenho saudade. tem dias de grandes interrogações.

tem dias de surpresas, tem dias de ausências. e minha vida segue em frente e eu tenho uma inveja danada das amigas que têm pai.

eu falo pouco da minha mãe aqui. ela, que teve que ser pai e mãe e dona de casa e administradora do caos.

pai, o senhor faz uma falta danada na minha vida, mas nem quero pensar no imenso vazio que é a sua falta na vida de mamãe. dá medo. muito, muito medo. mais medo do que pensar no resto da minha vida sem seu conselho, sem os conselhos que não ouvi porque era muito cedo para dizê-los. sem os conselhos que se perderam nos ouvidos moucos das pessoas que os ouviram e não os escutaram. nos meus próprios ouvidos moucos.

o mundo muda, as leis mudam, a natureza humana não muda.

outro dia sonhei com o senhor. eu, mamãe e o senhor. não lembro mais nada, não anotei quando acordei, eu perdi o sonho.

lembro do sonho em que saía gritando seu nome pela rua. e do outro sonho, há não sei quantos anos, em que o senhor alugava uma casinha para a gente veranear. uma casinha pequena, simples, acanhada, que era imensa, linda, luxuosa do lado de dentro.

o que é melhor, o que é mais bonito, o que não morre, tá aqui, do lado de dentro, guardado, me nutrindo para a vida. me ensinando a ser gente.

mas é difícil, pai. porque uma das heranças que o senhor deixou foi o medo. eu tenho muito medo, pai, muito. medo de meu marido morrer. medo de minha mãe morrer. o telefone toca fora de hora, eu penso em desgraça. meu marido se atrasa, eu fico tensa. mamãe adoece lá, eu surto aqui. o medo tá grudado em mim, viscoso, frio e verde. e forte. desde a sua doença, pai, eu convivo com o medo de perder quem eu amo. o medo de perder quem me ama. é muito difícil viver assim. é como uma sombra fria que fica me falando no ouvido "cuidado, cuidado..." e me tira a alegria muitas vezes. eu já fui na terapia, esse medo faz parte de mim. esse medo existe comigo desde meus dezesseis, dezessete anos. eu tenho inveja de quem não tem motivo para ter medo. é muito difícil, pai, conviver com uma voz que fala no seu coração "será que é dessa vez?"

pai, o senhor me deixou o medo, mas me deu a coragem de seguir apesar de. coragem não, pq quando as coisas não têm mais jeito a vida arrasta a gente prá frente, que é prá frente que a vida anda. então convivem em mim, o medo eterno e a continuação dos dias. pq a gente ri, se apaixona, cresce, sonha. apesar do medo agarrar nossos pés de noite. apesar do medo turvar nossos olhares. a gente ri, se apaixona, sonha, faz feira, paga contas, beija, vê filme. e tem horas tão boas, e risos tão fortes e amor tão intenso que o medo se apaga. mas eu sei que ele volta. como a alegria também volta.

pai, vc me dizia que "o que não me mata me deixa mais forte" e eu digo que às vezes, o que não me mata me aleija. mas a gente segue em frente, pai. sua família segue em frente, com os mesmos defeitos de sempre, com algumas novas qualidades. aos cacarecos, aos pandarecos, do jeito que dá. aos trancos, aos barrancos, aos sorrisos. a gente vai sobrevivendo, a gente vai levando. dia a dia, na falta que o senhor faz. vinte anos da falta que o senhor faz. a vida toda, na falta que o senhor faz. negando, brigando até hoje, reclamando, sentindo saudade, querendo que o senhor resolvesse tudo, com raiva da sua morte, olhando pro lado para deixar a dor passar sem que ninguém note, contando histórias pro seus netos.

para o senhor viver mais.

2.11.08

paulinho da viola canta coração leviano no rádio. papai dizia que paulinho da viola cantava sorrindo, e eu sempre penso nisso ao ouvir/ver este cantor tão querido.
Novembro

Que veio fazer em minha vida
Novembro dos mortos que desafiam todos os santos,
Trazendo calor, trazendo brisas
De lembranças quase esquecidas?

Que veio fazer em minha vida
Novembro que não é mês, é época
De mulheres parirem mulheres
Feitas com argamassa indestrutível?

Que veio fazer em minha vida
Novembro, mundo de sonhos, ilusões eternas,
Por que evita que festeje você em mim
Ou eu em você todos os dias do ano?

Que veio fazer em minha vida
Novembro, milagre de todos os santos
Nascedouro de anjos - e que anjos?
Tormentos de homens feitos de terra?


meu pai escreveu este poema em 1985, num novembro que existe até hoje.