19.2.03

do nada eu tive uma idéia: eu era o mp3 do meu pai.
é.
veja só: as músicas que ele gostava, pedia para que eu decorasse para cantar para ele. e eu cantava, na hora que ele pedia (e eu tinha saco, óbvio).

portanto, eu era um mp3 humano. um pré napster.
chegaram aqui numa pesquisa do google procurando por "saudade pai"

chegue, sente aqui na mesa, tome mais uma coca cola comigo (não gosto muito de cerveja...)
outra história do meu pai: ele me fez decorar o cpf dele. sei até hoje.

14.2.03

é engraçado: posso passar dias sem aparecer aqui, mas é só começar a escrever que as lembranças aparecem aos montes. e acabo escrevendo mais do que eu pensava.

hoje lembrei de uma história que meu pai contou: quando minhas irmãs eram pequenas, ele fez uma promessa para nossa senhora de só vesti-las de azul e branco até os nove anos.
ainda bem que eu escapei dessa. e não, não sei para que que era a promessa.

meu pai gostava de implicar com as beatas, dizendo que era ateu, graças a deus.

13.2.03

quando a gente se mudou para a Casa, meu pai comprou roseiras. tinha rosa la france (um arbusto de rosas cor-de-rosa escuro, cheirosíssimas, uma vez deu 19 rosas de uma vez só), rosa diamante, rosa chá, rosa branca, rosa champanhe, uns dez tipos de rosa no jardim de casa.

e ele me contou onde comprou, e eu fiquei danada porque não fui junto: ele comprou as flores num sítio de um japonês, lá em Carpina, onde você passava de carro pelo meio do roseiral. "era rosa de um lado, rosa do outro, um caminho grande"


quando ele teve o infarte e a gente passou quase um mês em recife, a empregada não cuidou direito das rosas e algumas morreram por conta de formiga. meu pai quase teve outro enfarte quando viu.

12.2.03

meu pai dizia que, quando eu quisesse desejar mal a alguém, eu desejasse que sua alma tivesse o sossego das ondas do mar
eu cantava para ele

De Volta Pro Meu Aconchego

Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo um sorriso sincero, um abraço
Para aliviar meu cansaço
E toda essa minha vontade

Que bom poder tar contigo de novo
Roçando o teu corpo e beijando você
Pra mim tu és a estrela mais linda
Seus olhos me prendem, fascinam
A paz que eu gosto de ter

É duro ficar sem você vez em quando
Parece que falta um pedaço de mim
Me alegro na hora de regressar
Parece que eu vou mergulhar
Na felicidade sem fim

Dominguinhos e Nando Cordel

E essas duas de Jorge de Altinho, que eu não sei o nome

rumoreja a água na fonte
faz zumbido o vento no mar
quem não tem de quem se lembrar
vive como o balanço do mar

noite clara, é tempo de lua
pois a lua na rua é luar
a saudade que tenho é tua
vou cantar prá não ter que chorar

eu vou no passo do compasso dessa vida
a hora que se passa nunca mais é revivida
o passo derradeiro que se pode dar na vida
é criar no coração amor que dure toda vida...

e

Eu tenho um segredo menina cá dentro do peito
Que a noite passada quase que sem jeito
Vendo a madrugada eu ia revelar
Mas quando um amor diferente tava nos meus braços
Olhei lá pro céu e vi no espaço
Uma estrela cadente se mudar
Eu lembrei das palavras doces que um dia eu falei pra alguém
Que prometeu me amar me beijou como ninguém
Que flutuou nos meus braços entrou nos meus planos
E nossos segredos confidenciamos sem hesitar

laiá, laiá...

meu pai buzinava o cazá-cazá apesar de ser náutico.
e buzinava lá do começo da rua. bastava ouvir a buzina que saía gente correndo para abrir o portão para ele entrar.
ele não gostava de esperar.
meu pai tinha uma amante.
minha mãe sabia.


uma vez, ele já estava doente, minha mãe contou a história.
eu disse que não queria saber, pq era assunto entre ela e meu pai, mas ela insistiu.

depois de toda a conversa, eu disse que, se ela tinha aceitado calada, não tinha que reclamar agora que ele não poderia responder nada.
ela não gostou do que eu disse. e eu respondi que eu tava quieta no meu canto, ela que veio falar. quem fala o que quer, ouve o que não quer.


às vezes tenho vontade de conhecer essa mulher. para falar um pouco do meu pai.
conta a lenda da família que minha avó paterna teve preceptora francesa.
preceptora é mais que governanta e mais que professora particular.
isso só moça de família rica tinha.

donde se conclui: pai rico, filho nobre, neto pobre.

quando minha vó pôs meu vô prá fora de casa, a situação ficou difícil. tempos de pobreza, com os filhos mais velhos trabalhando para ajudar nas despesas. era pobreza, mas não era miséria: por mais apertos que passassem, sempre houve comida na mesa. meu tio Clóvis uma vez me disse que só tinha duas camisas para trabalhar: uma lavando, uma no corpo. e meu pai só ganhava sapatos no dia do aniversário, quando minha tia mais velha levava ele "no comércio".

meu pai uma vez quebrou o braço. subiu na árvore para pegar uma fruta (que árvore? eu sabia mas esqueci) e caiu. minha vó brigou com ele, ele chorando disse que tinha ido pegar uma fruta para dar para a mãe preta (não sei quem era).
engessaram o bichinho, daquele gesso que pega o tronco e espeta o braço engessado no ar. tio joãozinho era um dos irmãos mais velhos do meu pai e assustou o pobre, dizendo que iam serrar o braço dele fora na hora de tirar o gesso.
meu pai se trancou no banheiro e foi molhando o gesso até sair tudo.
quando minha vó viu o que ele fez, ele ficou de castigo.

esse tio joãozinho sempre foi fonte de problema pro meu pai. tanto que os dois ficaram sem se falar a vida quase toda. não sei bem de todas as situações que aconteceram, mas a pior foi quando minha mãe ficou grávida de mim, aos 40 anos. meu tio era médico e espalhou para a família inteira que eu iria nascer deficiente mental.
aí meu pai parou definitivamente de falar com ele. eu nunca conheci tio joãozinho, mas conheci uma filha dele.
quando eu e minhas irmãs tínhamos alguma discussão, sempre surgia a briga de papai e tio joãozinho. era um medo da minha mãe isso acontecer conosco.

quando meu vô morreu, tio joãozinho botou o anúncio no jornal, mas só botou o nome da minha vó e o dele. imaginem a briga em casa.
quando minha vó morreu, os filhos botaram um anúncio, tio joãozinho botou outro.
por aí vocês tiram a figura que ele era.

tio joãozinho morreu quando meu pai já estava em coma. pelo que eu sei, os dois nunca se falaram de novo nem fizeram as pazes.

10.2.03

meu pai gostava de comer ravioli. ele pegava a lata de ravioli, abria e comia frio.
meu pai era gordo.

às vezes ele me pedia para tirar os sapatos dele. outras, para lavar-lhe os pés.
eu pegava a bacia e o sabonete. água quente, água fria.
e ia conversando com ele, às vezes de má vontade, outras vezes curtindo.

queria muito lavar seus pés de novo, pai.

7.2.03

quando eu tinha 10 anos a gente se mudou para uma cidade do interior. eu saí de um apratamento para uma Casa onde eu ia ter um Cachorro. imaginem a minha felicidade.
pois meu pai me levou para conhecer a Casa. Jardim!!! Quintal!!! Goiabeira!!! Um quarto só meu!!!
meio dia a fome bateu, mas não tinha problema, pq a despensa estava cheia.
cheia sim, cheia e trancada: a chave tinha ficado em recife com a minha mãe.
meu pai não esquentou, o que era raro.
fomos no mercado e compramos carne e sal. pedimos uma panela emprestada a um vizinho. compramos coca cola, carvão, um litro de álcool, um quilo de farofa. pedimos um facão emprestado a outro vizinho.
meu pai catou uns tijolos que estavam num canto da casa, montou uma fogueira desse tamainho. com o facão, limpou uns galhos de goiabeira, espetou a carne neles. e fizemos o churrasco mais maravilhoso da minha vida, pois tudo que podia ter dado errado deu certo e a gente estava junto e rindo.

6.2.03

ô, que saudade.
uma das vezes que meu pai tentou parar de fumar ele ficou tão intratável que eu fiquei feliz quando ele voltou a fumar.
ele brigava com tudo e todos, mordia a sombra.

tava difícil conviver com ele naqueles tempos.
meu pai comprava gibi da luluzinha e do bolinha dizendo que era para mim.
era, mas ele adorava ler. ele comprava para ele, depois me dava :)
meu pai de vez em quando pedia que eu o rezasse.
era uma reza que ele aprendeu com uma velha que foi empregada lá de casa, mas eu não sei quando. o nome dela era comadre joaninha.

era para eu botar a mão na cabeça dele e dizer "geraldo, tu em pé e teus inimigos deitados. mais do que deus, ninguém."
eu gosto muito de contar esta história:

eu devia ter 12 para 13 anos e estava usando um vestido vermelho de malha com estampa de cachorrinho. a gente estava no carro, indo ou vindo para recife: eu, meu pai dirigindo, minha mãe.
paramos na frente de uma granja onde a gente tinha morado quando eu tinha uns cinco anos. paramos para roubar pitanga na cerca.
eu e meu pai descemos do carro e ficamos roubando pitanga.
tinha chovido, o chão tava lamacento.
minha mãe gritava de dentro do carro: "geraldo, você não pode roubar pitanga! você é um promotor público!"
Naquela Mesa.
(Sérgio Bittencourt).

Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor,
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor.
Naquela mesa ele juntava a gente
E contava contente o que fez de manhã,
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho eu fiquei seu fã.

Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim,
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída não doía assim,
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala no seu bandolim.
Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele está doendo em mim.

Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele está doendo em mim.
amando e dando vexame


meu pai já tinha morrido fazia um tempo. eu estava em maceió com amigas num bar com música ao vivo.
aquela história de amigas saindo de noite. muita risada, muita abobrinha, alguma paquera.
e o filhodaputa do saxofonista tocou naquela mesa.
e eu lá, sob o impacto.
meu pai gostava dessa música.
e eu lá, mantendo a pose, desmoronando por dentro.
e o cara tocando.
e minhas amigas notaram que eu estava estranha.
e o cara tocando
e eu abri o choro, na mesa, na frente de todo mundo.
chorei de soluçar, de ficar com a cara vermelha, os olhos inchados, o nariz entupido, esquecida de tudo à minha volta, só pensando na música e no meu pai e em mim sem ele o resto da vida.
de repente me levantei e corri pro banheiro. sentei no chão e continuei chorando.
até que o meu senso de ridículo me domou, como sempre.
mulheres que eu não conhecia me olhavam, espantadas.
uma amiga chegou ressabiada para falar comigo.
levantei, lavei o rosto, passei a mão no cabelo e tentei achar coragem para mostrar a cara de novo no restaurante. era óbvio que eu era a atração principal da noite.
sentei na mesa, bebi uma água, fingindo não notar que todo mundo olhava para mim: a louca chorona.
o saxofonista terminou de tocar outra música e veio falar comigo, saber o que tinha acontecido.
contei do meu pai, ele pediu desculpa.

o resto da noite eu esqueci.

4.2.03

meu pai brincava de fantasma da meia noite comigo

e cantava músicas que me faziam morrer de rir e até fazer xixi na roupa

"por ti! eu me esborracho todo, morena..."
minhas irmãs lembram diferente do meu pai.

simples: eu lembro do meu pai, não do pai delas. dá para entender?
meu pai gostava muito do bolo pé-de-moleque. é um bolo que se come, preferencialmente, no são joão, e leva café e castanha de caju na receita.

minha mãe fazia o bolo quando ele pedia e só faltava ter uma síncope com a reação que ele tinha quando comia. meu pai mordia uma fatia e dizia 'tá bom. mas o da minha mãe era melhor"

e quando o bolo estava excepcionalmente bom, ele admitia: "tá lembrando o da minha mãe"


por isso que ele dizia que só estava casado pq era com minha mãe. fosse com outra, ela não agüentaria.